terça-feira, 25 de maio de 2010

Trabalho escravo. É hora de abolir!






É um grande absurdo ainda convivermos com trabalho escravo, que é desumano e fere a Constituição, porque é um trabalho degradante e que cerceia a liberdade. Conversamos sobre este tema com a jovem historiadora Cristiane Marques Oliveira.

Cristiane Marques Oliveira,
especialista em Políticas Públicas, Gestão e Práticas Pedagógicas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, BA.
Endereço eletrônico: crismaroli@yahoo.com.br
Mundo Jovem: Como se deu o desenvolvimento do trabalho escravo no país?

Cristiane Marques Oliveira: No início, a economia colonial e imperial (ciclos de exploração do pau-brasil, do ouro e monocultura da cana-deaçúcar e café) baseava-se no trabalho escravo. O latifúndio monocultor no Brasil exigia uma mão-de-obra permanente. Era inviável a utilização de portugueses assalariados, já que a intenção não era vir para trabalhar, mas para enriquecer.

Na fase inicial da lavoura canavieira ainda predominava o trabalho escravo indígena. Caem por terra argumentos amplamente utilizados, como a inaptidão do índio ao trabalho agrícola e sua indolência. Após a captura, os índios eram forçados a executar um duro trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar, onde eram supervisionados,explorados e maltratados.Estudos mais recentes mostram quea reação do nativo foi tão marcante que se tornou uma ameaça perigosa para certas capitanias, como Espírito Santo e Maranhão. Além da luta armada, os indígenas reagiram de outras maneiras, com fugas, alcoolismo e homicídios como forma de reação à violência estabelecida pelo escravismo colonial. Destaca-se também a posição dos jesuítas que, voltados para a catequese do índio, opunham-se à sua escravidão.


Mundo Jovem: Quando e como começa a escravidão do negro no Brasil?

Cristiane Marques Oliveira: Embora o índio tenha sido um elemento importante para a formação da colônia, o negro logo foi considerado a principal base sobre a qual se desenvolveu a sociedade colonial brasileira. A maior utilização do negro como mão-de-obra escrava básica na economia colonial deve-se principalmente ao tráfico negreiro, atividade altamente rentável, tornando-se uma das principais fontes de acumulação de capitais para a metrópole. Exatamente o contrário ocorria com a escravidão indígena, já que os lucros com o comércio dos nativos não chegavam até a metrópole. Torna-se claro, assim, o ponto de vista defendido pelo historiador Fernando Novais, de que “o tráfico explica a escravidão”, e não o contrário.


Mundo Jovem: Por que depois houve a opção pela imigração?

Cristiane Marques Oliveira: Foi a forma de se substituir o trabalhador negro escravo, diante da crise do sistema escravista e da abolição da escravatura. A vaga imigratória foi impulsionada pelas transformações socioeconômicas que estavam ocorrendo em alguns países da Europa e pela maior facilidade dos transportes, advinda da generalização da navegação a vapor e do barateamento das passagens.

Mesmo assim, a exploração do trabalho escravo tornou possível a produção de grandes excedentes e uma enorme acumulação de riquezas, contribuindo para o desenvolvimento econômico e cultural que a humanidade conheceu em determinados espaços e momentos.


Mundo Jovem: Por que o escravismo permaneceu por tanto tempo no Brasil?

Cristiane Marques Oliveira: Nosso país serviu como base para o enriquecimento das nações colonizadoras e atualmente serve de mercado consumidor e fornecedor de matéria-prima aos países que estão no topo da produção capitalista. Os ciclos de exploração das riquezas brasileiras necessitaram de trabalhadores eficientes e o capitalismo alia este fator à questão do custo. A pobreza e o desemprego são fatores que desencadeiam um excedente de mão-de-obra barata que serve de subsídio para que o sistema capitalista continue ativo.

Vale salientar que a antiga escravidão tinha como peculiaridade a relevância das diferenças étnicas. Atualmente o indivíduo, a despeito de cor ou raça, pode se tornar escravo, levando-se em conta somente o seu nível econômico.


Mundo Jovem: A correlação trabalho e dependência é necessária ou poderia ser diferente?

Cristiane Marques Oliveira: A escravidão não se configuraria sem a relação de submissão empregado/empregador. Sendo o escravismo a prática social em que um ser humano tem direitos de propriedade sobre o outro - condição imposta por meio da força -, não era crime nenhum naquela época a prática de violência, coerção física, punições exemplares e assassinatos com algo que era tido como uma mercadoria, um bem. A cultura do europeu, seu modelo de civilização, seu ideário também foram importantes para que o escravo fosse considerado inferior, o que durante muito tempo justificou a escravização de milhares de africanos. Ainda hoje a relação de dependência e submissão existe para que a vontade do poder em vigor seja assegurada, e as formas de preservar a ordem no trabalho escravo ainda são as mesmas praticadas há séculos. À medida que o trabalhador escravo depende do seu empregador, submetendo-se às regras arbitrárias impostas, os laços entre ambos se estreitam de forma que o indivíduo se torna mais uma ferramenta de trabalho do patrão, não pod ndo se desvincular dele.


Mundo Jovem: O trabalho escravo ainda existe?

Cristiane Marques Oliveira: Infelizmente, sim. A assinatura da Lei Áurea, em 1888, representou o fim do direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra, colocando fim à possibilidade de possuir legalmente um escravo. No entanto persistem situações que mantêm o trabalhador sem possibilidade de se desligar de seus patrões.

Há fazendeiros que, para realizarem derrubadas de matas nativas para formação de pastos, produzir carvão para a indústria siderúrgica, preparar o solo para plantio de sementes, entre outras atividades agropecuárias e extrativistas, contratam mão-de-obra utilizando os famigerados gatos. O Tocantins e a região Nordeste, tendo à frente os estados do Maranhão e do Piauí, são grandes fornecedores de trabalhadores, enquanto o destino principal é a região de expansão agrícola, onde a floresta amazônica tomba diariamente para dar lugar a pastos e plantações. Os estados do Pará e Mato Grosso são os campeões em resgates de trabalhadores, entretanto há trabalho escravo em todas as regiões do Brasil, até mesmo em estados mais desenvolvidos, como São Paulo.

As fazendas estão incrivelmente distantes dos locais de comércio mais próximos, sendo impossível ao trabalhador não se submeter totalmente a esse sistema de barracão, imposto pelo gato a mando do fazendeiro, ou diretamente por este. Se o trabalhador pensar em ir embora, será impedido sob a alegação de que está endividado e de que não poderá sair enquanto não pagar o que deve. Muitas vezes, aqueles que reclamam das condições ou tentam fugir são vítimas de surras. No limite, podem perder a vida. Este é o escravo contemporâneo, vítima do crime previsto no artigo 149 do Código Penal, submetido a condições desumanas e subtraído de sua liberdade.


Mundo Jovem: Como é feita a fiscalização?

Cristiane Marques Oliveira: Os escravos que conseguem fugir das fazendas - muitas vezes andando dias até chegar em alguma cidade - ou que são liberados após o fim do serviço denunciam os maus tratos. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Polícia Federal, sindicatos, cooperativas de trabalhadores, entre outros, recebem as denúncias e as encaminham ao Ministério do Trabalho e Emprego e às Delegacias Regionais do Trabalho.

Muitos trabalhadores têm medo de prestar queixa às autoridades locais, pois há pessoas ligadas aos fazendeiros. A Secretaria de Inspeção do Trabalho recebe e faz uma triagem dos casos. Um grupo móvel de fiscalização é acionado e se dirige à região para averiguar as condições a que estão expostos os trabalhadores. Quando encontram irregularidades, como superexploração, trabalho escravo ou infantil, aplicam autos de infração que geram multas, além de garantir que os direitos sejam pagos aos empregados. Por outro lado, a rede de informações de fazendeiros é extensa e, quando há rumores da presença de um grupo móvel na região, eles escondem os peões.

Quando libertados, a maior parte volta para sua casa e sua família. Pelo menos, até o dinheiro dos direitos pagos acabar. E a seca, o desemprego, a falta de terra e de crédito agrícola apertarem novamente. Outros continuam na região de fronteira agrícola, com a esperança de conseguir um serviço que pague bem e um patrão que os trate com dignidade. Apesar de ser uma minoria de fazendeiros que utilizam escravos, não é raro os trabalhadores serem enganados novamente.


Mundo Jovem: Há dados desta fiscalização?

Cristiane Marques Oliveira: De 1995 até agosto de 2009, cerca de 35 mil pessoas foram libertadas em ações do Ministério do Trabalho e Emprego. As ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados, escondidos em propriedades atrasadas. Pelo contrário, são latifundiários que produzem com alta tecnologia para o mercado interno ou para o internacional. A população desempenha um papel primordial no processo de fiscalização, já que é ela quem convive com a realidade.
Combate ao trabalho escravo:

A participação da sociedade é importantíssima para abolir de vez essa que é uma das maiores violações dos direitos humanos. O site da ONG Repórter Brasil traz a lista suja (empregadores flagrados com trabalho escravo), notícias sobre escravidão e informações para conscientizar trabalhadores e a população em geral.
Acesse: www.reporterbrasil.org.br

Outra forma de participar é assinar o abaixo-assinado pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 438/2001), pela qual seriam confiscadas as terras de quem utiliza trabalho escravo.
Acesse: www.trabalhoescravo.org.br/abaixo-assinado
________________________________________

Eu não sabia que era um escravo?
Tudo começa com um moço chamado “gato”. Ele chega na cidade com boas promessas. Uma pessoa está passando necessidade e ele diz: “Rapaz, você não quer trabalhar lá no Pará? Lá o serviço é bom, você vai ganhar bem”. Aí a pessoa se anima, mas diz que não tem como ir. Ele fala que não tem problema, que o patrão paga adiantado, e dá o dinheiro para pagar a passagem e pra deixar com a família. Aí a pessoa se anima e vai.

Chegando lá, a escravidão já começou. Quando vai acertar a primeira mensalidade com o patrão, este pergunta: “Qual dinheiro que você quer?”. - “O dinheiro do meu serviço.” E o patrão: “Não, você é que está me devendo. Não dei dinheiro pra sua família, pra sua passagem, as ferramentas que você pegou pra trabalhar? Então, tudo isso está anotado num caderno e vai ser pago, com juro e tudo”. Os alimentos que você compra a preços absurdos ajudam a endividar mais rápido ainda. Além disso, a água que se bebe é suja e é a mesma dos animais. Isso sem falar dos vigias que passam armados na sua frente.

Não passava pela minha cabeça que eu estava sendo um escravo, porque pra mim escravidão já tinha acabado. Fiquei com medo, pensei que não ia mais ver minha família e voltar para a minha terra. Eu não tinha uma corda presa nos meus pés ou nas mãos, mas estava amarrado lá, pois não podia sair, não tinha contato com ninguém de fora, estava endividado e em má situação. Os trabalhadores sempre ajudavam que pelo menos um fugisse, para fazer a denúncia e libertar os outros. Depois do nosso resgate, a CPT começou a travar uma grande luta de conseguir um pedaço de terra pra nós trabalharmos e de nos indicar quais eram os nossos direitos e como a gente deveria agir.

Após quatro anos, conseguimos um assentamento, a 700 km da capital Teresina. Embora pareça incrível, as coisas não melhoraram tanto assim. Quando nos deparamos com a totalidade do assentamento, havia um arame farpado bem no meio, pois um fazendeiro já tinha se apoderado da metade da terra. Na parte que a gente está, não foi liberado ainda nenhum tipo de crédito, de habitação, apoio e infraestrutura. Assim, descobrimos que só a terra não basta.

Por um lado, estamos animados, porque estamos trabalhando na nossa terra, mas por outro, estamos desanimados, porque a situação precária faz com que o companheiro esmoreça na luta e se arrisque, voltando para esses trabalhos degradantes. Quase todos sabem como é o trabalho escravo e como fazer para acabar com ele, mas não adianta resgatar o trabalhador da fazenda sem ter toda uma continuidade nesse processo.
Francisco José dos Santos Oliveira,
presidente da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras
na Prevenção do Trabalho Escravo em Monsenhor Gil, PI.


www.mundojovem.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário